How-ta-shai conta sua
história
Por Suzanne Lie PhD
Em 1º de maio de 2015
ESTADOS UNIDOS, SÉCULO XIX
Esse menino nasceu para ser um guerreiro.
Assim que pôde andar, ele se lembrou de querer montar um
cavalo.
Se sua mãe não o vigiasse, ele correria para onde os cavalos
estavam presos e tentava andar entre eles.
Bastante notável: ele nunca se machucou.
Muitas vezes ele escapava dos olhos dos adultos que estavam
cuidando dele e corria para os cavalos.
Assim que os adultos perceberam que ele não se machucaria,
eles permitiram que ele fizesse isso.
Talvez ele pensasse que era um cavalo ao invés de um com
“duas pernas”.
Ou talvez ele apenas apreciasse a força dos cavalos.
Como todos suspeitavam, ele se tornou um excelente cavaleiro
e todos sabiam que ele seria um guerreiro valente até que a coisa mais
inesperada aconteceu.
Ele caiu de seu cavalo.
Na verdade, ele tinha certeza de que uma força invisível o
empurrara.
Ele tinha treze anos e era sua primeira caça a búfalos.
Ele estava se sentindo como um homem, mas não agia como um
porque ele pensava que era melhor do que o cavalo: ele era o caçador.
Seu orgulho o pôs em apuros.
Ele não estava respeitando o cavalo ou o búfalo, e quando o
cavalo virou rapidamente para a esquerda, ele foi para a direita.
Ele estava tão ligado no ato de ser um “homem” que se
comportou como um garotinho e se esqueceu de sua primeira lição.
Ele e o cavalo eram um.
E então, em sua arrogância, ele caiu do cavalo bem no
caminho de um búfalo furioso.
Pior ainda, ele caiu sobre seu ombro e seu braço direito ficou
inoperante ao seu lado.
Ele agarrou sua lança com a mão esquerda e, tal como o
Espírito o havia empurrado do cavalo, o Espírito guiou seu braço e ele atingiu
o búfalo com sua lança.
O animal gigante não morreu com um golpe, mas cambaleou.
Isto deu ao menino tempo para se levantar e correr para seu
cavalo que esperava por ele apesar do grande perigo.
Com o braço que estava bom, o garoto conseguiu subir no
cavalo e foi para a segurança.
Os outros caçadores testemunharam essa cena e liberaram o
búfalo da vida.
O jovem caçador tinha dado o primeiro golpe em um búfalo
poderoso e ele era um herói.
Entretanto, ele se conscientizou quando seu braço ficou
inoperante ao seu lado de que ele jamais seria um guerreiro.
Seu ombro curou muito mais depressa do que seu coração.
Ele recuperou a maioria do movimento de seu braço, mas ele
não podia atirar uma lança ou usar um arco e flecha.
No final, ele aprendeu a usar seu braço o suficiente para
caçar, mas ele não tinha a força para entrar numa batalha.
Então ele se preocupou.
Sua vida estava acabada.
Ele não era um guerreiro.
Ele mal era um homem!
Como ele poderia viver com essa deficiência?
Ele era inútil.
Sua vida acabara antes de ter a chance de começar.
Ele saía supostamente em viagens de caça, mas ele não tinha
vontade de caçar.
Ele nem apreciava montar seu cavalo.
Ele tinha que partir de sua tribo.
Ele não tinha nada para oferecer e era egoísmo da parte dele
ficar.
Ele não sabia para onde ir.
Ele somente sabia que tinha que partir.
Um dia, antes de amanhecer, ele reuniu umas poucas coisas e
saiu da tenda antes dos outros acordarem.
Ele se dirigiu para o oeste, longe do sol nascente e longe
de seus sonhos.
Ele não sabia para onde estava indo ou por quê.
Ele não se importava.
Por dias e dias ele caminhou.
Ele não havia trazido seu cavalo, pois um guerreiro
precisava do animal e ele não tinha o direito de levá-lo consigo.
Após o sol nascer e se pôr muitas vezes, ele chegou a um
território que era novo para ele.
No final do segundo ciclo da lua, ele estava perdido.
Claro, ele não estava perdido no sentido de que não poderia
ir para casa; mas ele estava perdido no que tange a não fazer ideia de onde
estava indo ou do que iria experimentar em seguida.
Ele não estava com medo.
Nada pior poderia acontecer a ele.
Talvez se ele perdesse seu passado, ele poderia encontrar um
futuro.
À distância ele viu um penhasco alto e decidiu que subiria
ao topo para procurar sua visão.
Ele enterrou suas provisões no sopé do penhasco, pois não
precisaria de alimento ou conforto, e começou sua subida.
O caminho até o topo era muito íngreme, com pedras soltas e
poucas coisas em que se segurar.
Após quase cair por várias vezes e desejando ter a força de
um homem nos dois braços, ele finalmente chegou ao topo do despenhadeiro quando
os últimos raios de sol estavam baixando no horizonte.
Ele encontrou um pequeno nicho em que sentar e se enrolar
para esperar.
A noite foi ficando cada vez mais fria, mas ele mal notou.
Ele jurou que não se moveria até ter recebido sua visão.
Com cada hora, ele mergulhou mais e mais profundamente em si
mesmo.
No amanhecer ele estava num transe profundo.
Gradualmente uma tempestade se formou ao seu redor.
Parecia o eco da tempestade dentro de sua alma.
O clima ficou cada vez mais frio e o vento ficou gelado.
Ele sabia que em breve nevaria.
Muitas luas haviam passado desde sua lesão.
As planícies e a dor de sua vida desperdiçada agora pareciam
muito abaixo dele.
De seu poleiro no despenhadeiro, ele sentiu como ele participava
da força crescente da Natureza, e cada vez menos participava de seu corpo
físico.
Quando o vento o açoitava, ele podia sentir seu Espírito
sendo transportado.
Ele desejava voar como o vento e troar como o trovão e estar
livre de uma vez por toda das limitações de seu corpo lesado.
Sua raiva e sua decepção enchiam seu coração e mente e ele
desejava deixar a prisão de barro de seu corpo.
Avô, ele gritou
para o vento uivante, leve-me com você!
Ele se entregou à influência da tempestade da natureza e com
um clarão de raio, ele foi retirado de seu corpo.
Ele olhou para baixo e viu uma pequena forma vazia agarrada
ao lado de um despenhadeiro e vagamente pôde se lembrar de que era ele.
Ele se deixou levar pelo vento como um pássaro.
Seu Espírito não conhecia limites e a turbulência no ar
somente aumentava seu entusiasmo.
Ele não sabia onde estava ou para onde ia.
Ele não se importa se iria voltar para aquela pequena casca.
Agora ele estava no Lar.
Ele era o vento e o céu que o mantinha.
Ele foi elevado mais e mais alto de onde ele estivera e de
quem ele já fora.
Ele pareceu perder a consciência por um momento e quando
despertou, ele se encontrou nas planícies.
Ele estava sozinho, exceto por um búfalo que era branco como
a neve.
Eles estão chegando
para nos matar! – disse o búfalo. Eles
ganharão o poder sobre vocês por nos matar e não há nada que nós possamos fazer
para impedi-los.
Com essas palavras o búfalo virou e foi embora.
O Espírito do Índio correu atrás dele com muitas perguntas.
Quem são “ELES”? Por
que eles querem o poder sobre nós? Como eles podem matar vocês?
Mas o búfalo era somente um animal agora.
Não era mais branco e estava sozinho.
O homem se virou e viu muitos montes à distância.
Ele não conseguia decifrar, então foi para mais perto a fim
de investigar.
Quando se aproximou, ele viu que os montes eram búfalos mortos
– milhares deles, mortos pelo prado.
Alguns estavam sem o couro, mas a carne preciosa foi deixada
para estragar ao sol.
Alguns estavam feridos e deixados para sofrer e ter uma
morte lenta.
Alguns eram vitelos e alguns eram fêmeas prenhas.
Que atrocidade era essa?
Quem poderia fazer uma
coisa dessa e por quê?
As palavras do búfalo branco ecoaram em sua cabeça: Eles ganharão o poder sobre vocês por nos
matar.
Ele devia impedir essa carnificina.
Ele não podia permitir que isso acontecesse.
Ele devia retornar para sua tribo e avisar.
Ele não podia abandonar seu povo na hora da necessidade.
Com esse pensamento, de repente ele ficou ciente de si
abaixo de seu Espírito, comprimido contra a lateral de um despenhadeiro.
Ele parecia tão morto como o búfalo na planície.
Seu rosto estava branco, seus lábios roxos e havia neve ao
seu redor.
Ele precisava voltar ao seu corpo antes que fosse tarde
demais.
Ele se esforçava para voltar, mas o próprio vento que lhe
dera liberdade agora estava causando sua morte.
As correntes de ar estavam fortes e o afastavam de seu
corpo.
Ele sabia que para voltar ao corpo ele teria que QUERER
viver.
Ele tinha que lutar pelo direito de estar vivo – vivo com um
propósito.
Ele devia voltar e ajudar seu povo.
Gradualmente ele pôde se sentir indo para seu corpo.
Ele se esticou como se pudesse se puxar de volta a ele.
Quando finalmente ele o tocou, o corpo estava gelado.
Era tarde demais.
Ele já estava morto.
Se ele entrasse agora em seu corpo, talvez ele fosse um
fantasma, preso para sempre entre dois mundos, mas ele tinha que arriscar.
Ele tinha que acreditar que podia se recuperar até estar
saudável.
E então, de repente, tudo ficou escuro e ele estava com
frio, muito, muito frio!
Ele tentou se mexer, mas não conseguia.
Seus braços e pernas estavam congelados, e ele não podia
sentir os dedos da mão ou dos pés.
Ele se enrolou todo tentando manter dentro de si qualquer
aquecimento que pudesse.
Ele tinha que se aquecer.
Gradualmente ele descobriu que podia rastejar.
Na verdade, ele estava se arrastando com seus cotovelos.
Parecia haver uma reentrância logo à frente, talvez fosse
uma caverna.
Após o que pareceu ser um longo tempo, ele chegou à entrada
da caverna.
Ele rolou para ela, mas ela era em declive e ele rolou sem
controle.
Rolou, rolou até que de repente parou em algo grande e
peludo.
Era um urso.
Ele não se importou.
Era quente.
Ele caiu no calor dessa pele e desmaiou.
Ele não sabia por quanto tempo esteve inconsciente, mas
quando acordou, ele estava quente, ou pelo menos não estava gelado.
E ele podia se movimentar.
Suas mãos e pernas obedeciam aos seus comandos, mas seus
dedos das mãos e pés estavam queimando como se um milhão de abelhas o
estivessem picando.
Esfregando as mãos, ele desejou sentar-se e orientar-se.
Gradualmente, conforme seus olhos se acostumaram à
escuridão, ele descobriu que estava sozinho.
Mas no chão ao seu lado estava uma pilha de raízes.
Elas estavam praticamente congeladas, mas eram comestíveis.
Por que havia essa pilha de raízes na caverna?
Ele sabia que não as tinha levado para lá.
Ele ainda não estava certo de onde estava ou como havia
chegado ali.
Então ele se lembrou de sua visão e seu esforço para voltar
ao seu corpo congelado, sua queda na caverna e o urso.
Ele nunca ouvira falar de um urso que levava comida para a
sua caverna.
Mas era comida e ele estava faminto.
Ele começou a comer as raízes e assim que começou, não houve
nenhum outro pensamento até que comeu todas elas.
Quando terminou de comer, sentiu sede e se arrastou para a
entrada da caverna, surpreso com como fraco ele ainda estava, e comeu um pouco
de neve.
Onde estava o urso?
Ele achou outra caverna ou ele estava em sua última busca
por comida antes da hibernação?
Se fosse esse o caso, ele precisava partir antes do urso
voltar.
Mas, com a ideia de deixar o abrigo da caverna, ele percebeu
que ainda estava fraco demais.
Se fosse para o urso matá-lo, já o teria feito.
Além disso, com certeza ele não conseguiria sobreviver lá
fora.
Ele se arrastou de volta para a parte mais profunda da
caverna e caiu no sono.
Várias vezes ele chegou à beira do estado desperto e se
lembrou de um enorme monte peludo encostado em sua forma adormecida.
Ele se sentia seguro, quente e voltava para as profundezas
do sono.
Quando ele acordava completamente, normalmente encontrava
mais raízes, que ele comia com grande apetite.
Às vezes o urso estava lá, às vezes não.
Finalmente, após um período de tempo indeterminado, o homem
foi capaz de permanecer desperto tempo suficiente para refletir sobre sua
situação.
Desta vez, quando ele acordou, ele encontrou o urso dormindo
profundamente na profundeza mais distante da caverna.
Era quase como se o urso soubesse que o jovem homem estava
bem agora e então ele entrou em seu sono de inverno.
O homem percebeu que o urso tinha lhe trazido as raízes, o
manteve aquecido e que, de fato, salvara sua vida.
Este era um presságio poderoso sobre o propósito de sua
vida.
A natureza o salvara e ele precisava pagá-la por isso.
A ele foi concedida a Medicina do Urso e ele aprenderia a
utilizá-la.
Por dois invernos ele viveu naquela caverna com o urso.
Como ele sobreviveu ao primeiro inverno ele tão tinha
certeza.
Quando ele recuperou força suficiente, ele se arrastou até o
pé do penhasco e desenterrou seus suprimentos por debaixo de um monte de neve.
Ele dormia muito e se aconchegava com o calor do urso.
De alguma forma ele sobreviveu com os suprimentos que ele
recuperara e com alguns animais pequenos que ele pegava fora da caverna.
Seus primeiros ensinamentos se deram no estado de sonho.
Noturnamente ele se encontrava com o Grande Espírito e
recebia muitas instruções.
Ao acordar, ele caminhava na neve para tentar ancorar essas
instruções em sua forma física.
Foi durante essas caminhadas diárias que ele aprendeu a se
conectar com a Natureza de uma forma que nunca se conectara antes.
Tudo da Natureza estava adormecido, como ele, nas
profundezas do inverno, mas o Grande Espírito nunca adormecia e tornou-se uma
companhia constante para o homem.
A pessoa que ele sempre conhecera como ele agora estava
morta, e ele ainda não dera à luz seu novo eu.
Ele estava grávido dele.
Ele estava gestando uma nova essência lá do fundo que era
alimentada toda noite em seu estado de sonho.
Assim como a primavera começou a despontar, a semeadura de
seu novo eu começou a despontar.
O urso despertou e o deixou sozinho na caverna.
Ele se surpreendeu em como se sentiu sozinho.
Ele, também, deixaria a caverna para fazer para si um abrigo
encostado ao despenhadeiro que ele subira naquele fatídico dia no início do
inverno.
Quando ele viu a vida nova da primavera ao seu redor, ele
começou a criar uma vida nova dentro de si mesmo.
Seu novo eu era totalmente uno com toda a Natureza.
Como seus cavalos, ele podia farejar a água e não importava
quanto ele tinha que se afastar de seu abrigo, ele sempre podia voltar.
Ele se alimentava como seu amigo urso: peixe dos rios e de
um lago próximo, bagas, raízes e pequenas criaturas.
Um dia, enquanto comia bagas, ele sentiu uma estranha
metamorfose assumir seu corpo.
De repente suas mãos ficaram muito grandes e peludas e suas
costas apresentaram uma curvatura estranha.
Seu faro ficou tão forte que ele ficou tonto.
Ele caiu de quatro e começou a correr pelos bosques com uma
velocidade inacreditável.
Ele se perguntou se apenas se sentia como um urso ou se
alguém fora dele realmente o via como um urso.
E então ele farejou o aroma mais magnífico que já sentira: o
de uma ursa.
Ele foi até ela lentamente na direção a favor do vento.
Mas ela era muito esperta para ele, e virou-se para
encará-lo.
Ela farejou como se estivesse confusa com o cheiro dele.
Ele ficou em suas pernas traseiras, levantou suas patas e
rugiu para impressioná-la.
Ela não tinha nenhum filhote e estaria em breve preparada
para acasalar.
O homem/urso se virou e correu montanha acima, deixando-a
esperando pelo seu retorno.
Ele acordou na margem do riacho ao lado da área de bagas.
Ele estava nu e as roupas que ele tinha estavam em retalhos
ao seu redor.
Como ele teve força para retalhar suas roupas sem uma faca?
Seria verdadeiro?
Ele fora um urso ou foi somente uma visão?
Importava?
Agora ele vivia em dois mundos, o Mundo do Espírito e a
Terra de seus Pais.
Ele podia ir e vir e nunca perceber que tinha mudado de
realidades.
Ele perdeu sua mente ou simplesmente a trocou por seu Espírito?
Enquanto foi um urso, ele viu alguns cogumelos.
Ele iria colhê-los e guardá-los para a lua cheia, que viria
em uns poucos dias.
Ele se conscientizou de que havia alguma coisa importante
que ele devia fazer.
O Avô Céu e a Avó Terra o chamavam.
Ele jejuou por três dias e permaneceu nu como estava quando
acordou ao lado do córrego.
Então era a hora.
A lua estava cheia e alta no céu.
Ele abençoou os cogumelos nas quatro direções e os ofereceu
ao Grande Espírito, e os comeu lentamente.
Rapidamente a náusea o tomou, mas ele não vomitou.
Deitou-se e olhou fixamente a lua.
E ela parecia estar falando com ele.
Lembra. Lembra, meu
guerreiro?
Lembrar do quê? – ele
se perguntou.
Ela estava zombando dele?
Ele sabia que jamais poderia ser um guerreiro.
Ah, mas existem muitos
tipos de guerreiros, disse ela.
Eles só diferem na
escolha de suas armas.
Não posso segurar uma
arma. Nem como um urso, meu único braço seria mais fraco.
A voz ignorou sua reclamação.
Sua arma será seu
remédio.
Não tenho remédio, ele
argumentou.
Se você se lembrar de
quem você é, você terá seu remédio. Se o urso reconheceu você, por que você não
se reconhece?
Mas quem será meu
mestre? Estou sozinho na natureza selvagem.
Sim, você está certo.
A natureza selvagem será sua mestra.
E então a voz se calou e ele teve muitas visões.
Ele viu homens trajados de azul montados como caçadores e
com bastões de fogo.
Eram muitos, muitos mesmo.
Ele viu incêndios e mulheres e crianças fugindo em pânico.
Os homens sumiram.
Onde eles estavam?
Como eles puderam abandonar suas famílias?
Não, eles não tinham abandonado.
Ele viu os guerreiros esperando pela batalha, mas os homens
de azul estavam com medo deles e somente atacavam mulheres e crianças.
Esses inimigos não tinham honra?
Então ele viu árvores nuas.
As folhas sumiram e as árvores estavam alinhadas e unidas
para prender alguma coisa.
Ele tinha que libertar o que estava preso dentro delas.
Ele batia na madeira procurando por um modo de entrar,
quando ouviu risadas.
Ele olhou para cima e viu um homem de azul dentro da fileira
de árvores com sua cabeça e ombros olhando de cima das árvores mortas e abaixo
dele.
O homem ria e ria.
NÃO! – ele gritou.
Não quero essa visão. Ela é o mal!
A voz voltou. Ciclos
terminam como a mudança da lua. Mas como a lua sempre volta, voltará o Povo!
A visão seguinte que ele teve ele não conseguiu entender.
Lá estava seu povo, somente não tinha espaço ao redor dele.
Não havia planícies.
Não havia búfalo.
Os guerreiros deitados como idosos doentes, sentados
encostados às árvores e bebendo aguardente.
Eles pareciam morar em tendas que não eram do formato de
roda medicinal, mas eram planas com alguma coisa brilhando em cima.
Ao seu redor
havia coisas que pareciam mais com cavalos de ferro, mas eram menores e
pareciam que estavam quebradas.
Todos estavam tristes e abatidos.
E então aconteceu.
Com uma pancada da velha porta de madeira, alguém saiu de
uma tenda.
Ele era um guerreiro totalmente preparado.
Estava pintado e trajado para a guerra.
Ele trazia seu melhor arco e flecha.
Ele não queria o bastão de fogo do homem branco.
E na sua outra mão, mantido no alto, estava algo que
brilhava.
Algo que quase queimava, mas não queimava.
Era como a luz do sol e se espalhava por todo o acampamento.
Um por um, os homens preguiçosos, doentes se levantavam e
eram transformados em guerreiros poderosos.
O chefe ergueu ambos os braços para o céu e convocou o Mundo
do Espírito.
Ele olhou para o rosto do guerreiro e em esse único rosto
ele viu os rostos de seu Povo.
Então todos recuaram.
Ele não viu mais nada.
Ele tentou recuperar.
Ele queria se lembrar de tudo, mas não conseguiu permanecer
acordado.
Alguma coisa estava puxando seu Espírito.
A última coisa que viu foi sua forma nua deitada no chão da
floresta.
Quando ele acordou, o sol estava alto.
Ele rastejou até o córrego e rolou para ele.
Ele ficou ali praticamente o dia todo, entrando e saindo da
água até que, finalmente, ele tinha que encontrar alimento.
O que essa visão poderia significar?
Como a natureza poderia lhe ensinar o remédio?
Ele passou o resto do verão respondendo a essa mesma
pergunta.
A visão ainda era um mistério, mas a natureza era a sua
mestra.
O céu o ensinou como ser livre.
Os pássaros o deixaram usar seus olhos para ver a terra lá
embaixo.
As árvores lhe ensinaram onde encontrar raízes e outros
elementos comestíveis.
As abelhas encontravam para ele o mel, e todas as criaturas
falavam com ele numa língua sem palavras.
Enquanto ele cruzava as matas, ele sabia que de algum modo essa
casca poderia curar a dor e essa flor aliviaria o ardor em uma ferida.
A Natureza lhe deu seus segredos.
Com os dias mais curtos e as noites mais frias, suas lições
continuaram.
Então ele soube que era hora de voltar para sua ursa.
Eles realmente acasalaram ou era uma visão?
Tudo o que ele podia lembrar era que eles pareceram se
tornar um único ser.
Ela realmente era uma ursa ou era seu Guia Espiritual?
O inverno chegou e ele sabia que ia hibernar como um urso.
Ele juntou toda sua alimentação e um cervo velho deu a vida
por ele.
Seu companheiro urso lhe disse onde encontrar o cervo.
Deste presente da Natureza ele fez suas roupas para o
inverno e reuniu suas provisões.
Quando foi para seu descanso de inverno, o urso estava
esperando por ele.
Ele olhou para seu companheiro de duas pernas e caminhou
lentamente para o fundo da caverna.
O homem raramente fez caminhadas nesse inverno.
Ele estava muito ocupado sonhando.
Ele caminhava pelos céus com os Avós e retornava à Avó Terra
somente para comer e se aliviar.
Quando a primavera chegou, ele estava preparado.
Ele não sabia para o quê, mas ele estava preparado.
Um dia ele acordou e o urso tinha partido.
Ele sabia que ele, também, agora devia deixar a segurança da
caverna.
Ele reuniu suas poucas posses, pois ele sabia que não
voltaria.
Ele recebera suas lições.
Ele aprendera sua Medicina.
Agora ele devia usá-la para o bem de seu povo.
E retornaria agora.
Ele tinha algo para compartilhar.
Ele era um guerreiro e sua arma era sua Medicina.
Ele decidiu dar uma última volta pelo vale para se despedir
e para pegar provisões para sua longa jornada de volta para casa.
Toda árvore e toda folha da relva pareciam conhecê-lo.
As flores viravam para a sua direção, e os animais, insetos
e pássaros pareciam reconhecê-lo.
Finalmente, com a tristeza da despedida e a alegria da
esperança e propósito, ele virou uma última vez ao chegar à borda do vale.
O que era aquilo que ele viu à distância?
Sim, era sua companheira ursa.
E ao lado dela estava um pequeno filhote.
Mas o que essa visão
significava? – perguntou Shature.
O rosto de How-ta-shai empalideceu e entristeceu.
A visão era a Verdade,
apesar de que eu levei muitos anos para saber disso.
Ele moveu sua mão para a sua direita, em direção do homem
moribundo.
Uma Índia estava entrando na tenda com uma pequena cumbuca
de comida e um odre de água.
O velho gesticulou para que ela levasse embora.
Eu não irei comer até
os Casacos Azuis permitirem nós colocarmos nossas tendas fora das muralhas
deste forte.
A jovem mulher meneou com tristeza e respeito e saiu da
tenda com a comida intocada.
Ela olhou para o Comandante do forte que estava entrando em
seu alojamento, colocou a comida no chão na frente da tenda e foi embora.
O Comandante não gostava desse trabalho.
Qual era o sentido de torturar mais aquelas pessoas?
Toda manhã, quando ele entrava em sua sala, eles colocavam a
comida do velho Curandeiro do lado de fora da tenda.
E toda noite eles retiravam o mesmo prato cheio de comida
quando o comandante saía de sua sala.
Ele soube que cada membro remanescente da tribo sacrificava
uma pequena parte de sua quase intragável comida como um gesto de apoio ao seu
único guerreiro que restara.
O Comandante servira na Guerra Civil e lutara em muitas
batalhas heroicas, mas ele não via propósito em continuar envergonhando essas
pessoas pobres e derrotadas.
Entretanto, suas ordens eram para mantê-las dentro dos
limites do forte.
Para onde elas iriam agora?
Restaram tão poucos.
Os guerreiros estavam mortos ou presos.
Mas ele tinha que obedecer a suas ordens, não tinha?
E então, numa manhã, enquanto ele subia as escadas para sua
sala, ele virou-se para ver a cena familiar da comida em frente da tenda
daquele velho homem.
Mas, o que ele viu foi mulheres desmanchando a tenda e
envolvendo o velho Curandeiro com a pele fúnebre.
Todas elas se voltaram e olharam para o rosto do Comandante
e seus olhos demonstravam orgulho e amor.
Até as crianças pararam para garantir que ele sabia o que havia
acontecido.
O Comandante vira muitas coisas terríveis em sua longa
carreira militar, mas a simples visão da perda de um homem velho e corajoso
atingiu seu coração.
Ele descobriu que tinha que se apoiar no pilar do alpendre
para recuperar sua compostura.
Então ele chamou seu Tenente e disse com sua mais poderosa
voz:
Tenente, diga a essas
pessoas para montar suas tendas fora do forte!
***
Quando o Curandeiro terminou sua história, Shature sentiu a
profunda tristeza do “Povo”.
Ela tinha ouvido a história com seu coração e estava
admirada com a coragem de How-ta-shai.
Ela poderia ser uma guerreira valente assim quando
retornasse à Terra?
Há muitos modos de ser
um guerreiro, falou How-ta-shai.
Lembre-se de minha
história.
Eu tive que perder
minha capacidade de ser um guerreiro do modo que eu queria para ser um
guerreiro do modo que era o meu destino.
Eu não compartilhei
com você os muitos anos em que eu fui de grande serviço para o meu povo.
Esses foram anos
cheios de felicidade, serviço e amor.
Depois eu tive que
aprender a manter esse amor vivo durante anos e anos de dor, sofrimento e
perda.
Em minha morte, a
única coisa que me restou foi o próprio Amor.
Amor por algo maior do
que o mundo material.
Amor por um ideal.
Eu me sacrifiquei como
um símbolo do amor que eu mantinha pelos desígnios do meu povo.
Levou uma vida de
serviço para alcançá-lo, mas agora eu posso lhe dar um amor que é transpessoal
e além das emoções humanas.
Esse amor é um campo
de energia e um raio de poder.
Leve esse meu presente
e mantenha-o em seu coração.
O Curandeiro se levantou e Shature seguiu seu exemplo.
Ele deu a volta na fogueira e a abraçou, coração a coração.
Ela pôde sentir sua energia de urso, seu amor pela Natureza,
e toda a sua dor que ele transformara em sabedoria.
Sim, ela manteria esse presente para sempre, além de toda
vida e morte, dentro de seu Coração.
Do livro “Reconstructing Reality”, de Suzanne Lie.
Tradução: Blog SINTESE http://blogsintese.blogspot.com
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